sábado, 6 de julho de 2013

De mosquitos, tubarões e cubanos



Bonjour,

Tenho pensado muito em você nesses últimos tempos, ao acompanhar com ressalvas a grita e resistência dos médicos brasileiros e suas entidades de classe  à proposta do governo Dilma de contratar médicos cubanos para atender os brasileirinhos que morrem à míngua nos  próximos e longínquos recantos do país. Por mais que entenda os argumentos classistas e corporativistas dos profissionais médicos, acredito que a medida possa trazer algum alívio para as dores abdominais, os acessos de verme e os casos de diarreia que assolam as comunidades carentes do país. Sempre penso no seu exemplo, médica abnegada a um trabalho social e comunitário no Acre, atendendo clínica médica e pesquisando doenças tropicais, na fronteira com a Bolívia, imagino que tenha muito a nos ensinar sobre essa questão. 

Observei curiosa a capacidade de aglutinação da classe médica brasileira ao saír às ruas na última quarta-feira para protestar contra a medida. Me lembrou a disposição dos dentistas portugueses que por anos submeteram os profissionais brasileiros que tentavam exercer a odontologia naquele país a situações humilhantes. O mesmo ocorre com engenheiros estrangeiros que tentam se estabelecer no Brasil e são alvos da resistência  por parte de entidades de classe que insistem em não reconhecer os seus diplomas. E também com as centenas de médicos brasileiros que tentam revalidar os seus diplomas.

Em relação ao Revalida médico, o número de profissionais reprovados é cada vez maior, e o exame, coordenado pelo INEP e aplicado em faculdades federais de medicina pelo país, vem sendo colocado em xeque pelo governo federal. Em 2004 o Revalida aprovou 804 diplomas; em 2012 foram apenas 121 profissionais, segundo dados do Ministério da Saúde. Agora vê-se que esse processo realizado dentro das faculdades de medicina, que são os órgãos revalidadores, virou um tiro no pé. Parece claro que há a necessidade de critérios mais bem definidos para o Revalida, que talvez não se resumam apenas à realização de uma prova, mas à necessidade de uma formação contínua pós-diploma, que possa ser estabelecida num entendimento entre governo, órgãos de ensino e conselhos médicos. 

Imagino se esse fechamento ocorresse na área científica ou futebolística, por exemplo. Não teríamos as fantásticas trocas de experiências entre pesquisadores, docentes de países que visitam ou mesmo cada vez mais são incorporados com prazer aos processos de ensino e pesquisa pelo mundo. Imaginemos também as centenas de jogadores e outros atletas brasileiros que são incorporados aos times em todo o mundo, um Neymar sendo impedido de praticar o seu futebol em terras alheias simplesmente porque é um excelente jogador e está tirando o espaço de colegas atletas do Barcelona, por exemplo.

E o que diríamos dos jornalistas estrangeiros que se encontram no Brasil praticando o seu ofício? Ou das centenas de técnicos de mídia  brasileiros pelo mundo, caso fossem impedidos de praticar o seu ofício? Parece que em tempos de glocalizações em que o local e o global se presentificam,  não faz muito sentido certas reservas de mercado, desde que respeitados os principíos e as garantias do exercício profissional. Creio que nesse sentido, o Revalida - num molde consensual de critérios entre os interessados, diferente do que se tem aí - é um instrumento indispensável à garantia dos estatutos que dignificam a atividade e no combate à precarização da profissão médica; como para os jornalistas, o é o seu diploma.

Esse episódio da classe médica contra os colegas cubanos me fez lembrar daquela fábula japonesa, em que para se manterem frescos, peixes são transportados em um tonel ocupado por um tubarão. Para se manterem vivos, os peixes têm mesmo que reagir. O mesmo tem valido para os médicos que são contra a vinda dos cubanos (e também, pelo que parece, dos graduados brasileiros).

Eu gostaria de ter visto há mais tempo e mais vezes todos esses médicos que hoje estão se mobilizando abrir a boca mais vezes para defender e ir pra rua, convocar a população para lutar em favor de garantir a manutenção da proposta de universalização dos serviços do SUS e pela humanização da prática da medicina, não apenas pelo Revalida. Esse quadro em que a hospitalização, o enfoque diagnóstico de alta ponta assistencial que continua favorecendo os grandes grupos que controlam a medicina no país,  deve dar lugar ao tipo de medicina original a que se propôs o SUS, na perspectiva da prevenção e do combate às doenças e males que acometem a população - grande parte carente no país. Esse é que deveria ser o grande Revalida médico. 

Combater tuberculose, diarreia,  malária, dengue, doenças de chagas e outras doenças tropicais exige outro tipo de abordagem que não se resume (apenas) a melhores hospitais e assistência diagnóstica de ponta. Muitas vezes vale mais o compromisso de Hipócrates e uma boa dose de denúncia e renúncia. Você é quem bem sabe disso aí no Acre, na ponta da Amazônia, o que me dá muito orgulho. Posso falar de boca cheia que quem como você, minha irmã, exerce seu trabalho social juramentado longe ou perto e dá sua vida pela assistência social não tem medo de médicos cubanos. 

À tout à l'heur! 

M.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário reforça essa rede

Amigos do Cartas! Leia e curta nossos posts! Siga-nos!

De amiga que se vai e das lembranças que ficam: meu adeus a Christel

                                             Christel em Carcassone.  Minha amiga Christel partiu! Recebi seu adeus por intermédio de outra ...