Bonjour,
Estamos na Semana Santa, época em que eu me lembro perfeitamente de casa. Da infância, da nossa cultura baiana. E, especialmente, dos afazeres que tínhamos em casa quando nossos pais eram vivos. Tivemos a sorte de ter uma família unida. E de termos pais afetos à cultura e tradições baianas.
E isso me faz lembrar com frequência que éramos dados a comemorar cada data importante, fosse o Carnaval, fosse o São João, fosse o Natal e fosse mesmo a Semana Santa. Dado que nossa mãe era soteropolitana e a família dela tradicionalmente católica - nossa bisavó Bemvinda morreu aos 102 anos após passar mal durante uma missa no Rio de Janeiro, assim contava nossa mãe - a tradição de preparar caruru e vatapá e toda a comida baiana era arte de minha mãe - e nossa.
Eu infelizmente não aprendi a cozinhar tão bem quanto ela, aprendi pouco porque nossa mãe não nos introduziu nessas artes. Mas, o pouco que sei aprendi com ela, de ver, olhar, e apreciar o tempero delicioso. Que cozinhava muito bem. Aos domingos sempre tínhamos comidinhas para uma família inteira em torno da mesa. Era muito comum um cardápio em fins de semana com cozido, pirão, verduras, tudo delicioso, que D. Nilza preparava.
E havia sábados, dia de feira, em que nosso pai trazia caranguejos que nossa mãe punha na panela grande, ainda vivos, em água quente. E eu pequena, semi-adolescente, uns 12 anos, ficava imaginando aqueles bichos vivos, sendo cozidos nessa condição. Morria de pena. Eles arranhavam aquele caldeirão de alumínio, grande. E tentavam escapar, sem sucesso! Esse desespero desaparecia à mesa assim que encontrávamos aqueles caranguejos apetitosos, prontos para serem servidos. Nosso pai era aquela figura mansa, e sempre correto, "parceiro", como era conhecido. Educado, falava baixo, nunca levantava a voz. Mas, era rígido nos limites.
Ele era o criador. Inventava coisas. Adorava ler as revistas Ted que você amava. Ia sempre a Feira de Santana repor mercadorias. Mas, quando retornava, dificilmente deixava de trazer doces para suas crianças. Assim era no seu dia a dia: inventivo. Adorava festas, alegria, tinha sempre um litro de gim sobre a peça móvel da sala; ouvia os próprios discos e as próprias peças em seu repertório; adorava festas populares. O São João era a sua preferida, o Natal também. Estava sempre criando artes para nos reunir. Mas, um reunir silencioso. Nós fazíamos, ele estava ali, como peça-chave!
Quando éramos crianças - meus irmãos já adultos - ele adorava trazer para casa caças diversas, como teiu. Era hábito entre os pequenos comerciantes, como ele, da Rua Carlos Gomes, no Centro de Alagoinhas, onde crescemos. Tinha nos arredores meu tio Valter Schefler, sempre por perto, e Anália, dona de um bar, e o vizinho, um protérico chamado China. Os dois filhos deles, você lembra, eram meus melhores amigos, junto com Marivalda, neta da dona da pensão, situada à direita da nossa casa.
Eu não sei como são as suas lembranças daquele período, se ainda estão vivas. Nessa casa, sempre que chovia forte, a rua transbordava. E a água de enxurrada invadia a nossa casa. As crianças menores, eu e nossas duas irmãs, descíamos, navegando água abaixo porque a casa tinha um declive, com pequenos degraus. E a água vinha como enxurrada. Era uma vez ou outra que isso acontecia. A cidade nem chove tanto assim porque fica no Agreste. Mas, sempre uma festa para nós, crianças!
Em épocas como agora, a nossa mãe era a própria tradição. E quando fomos crescendo, a ajudávamos, indo na feira, e em casa, a preparar os ingredientes. O fazer, maravilhoso, era de nossa mãe mesmo. Era o momento em que a família se reunia quase inteira. Todos os seus filhos, filhas, netos, noras e genros. Isso demorou um pouco, só lá pra meus 20 anos.
Hoje, sentimos que as tradições não são apenas tradições: são nossa cultura, nossa memória, nossa maneira de ser, de viver em família. A Semana Santa tinha esse conforto, esse cuidado de estarmos em família, celebrando, bebendo um vinho vendido em garrafões. Fazendo aquele barulho de casa cheia, de muitas vozes celebrando, contando causos em voz alta, dando risadas. Saboreando a tradição que nossa mãe - e nosso pai - faziam questão de manter. Seja no caruru, seja no vatapá. E o acarajé, que não era muito comum encontrar-se à venda na cidade, de vez em quando em que a presenteávamos com um exemplar, era sempre uma festa! Uma das iguarias que mais nossa mãe amava! Hoje, na pandemia, em casa, só resta agradecer à festa da vida que só foi possível graças aos nossos antepassados.
À tout à l'heur!
M.